«Há uns anos, antes das obras, quando à noite a estação do Rossio parecia o último apeadeiro da linha de Auschwitz, e o vento afiado de Dezembro dava três voltas nas sombras do ferro para se atirar às gargantas, o caso que aqui vamos contar seria realmente pavoroso. Agora está tudo pintadinho, meteram música de violinos, há uns polícias a proteger com a vida uma árvore de Natal e a admnistração assegura que as obras vão acabar um dia.
O cenário piorou, num certo ponto de vista, mas o progresso não intimida o carniceiro da linha de Sintra.
De facto tinha batido no gelo a badalada da uma, os corações só queriam chegar a casa e as cabeças faziam as sinistras contas dos presentes que falta comprar, de modo que dispensavam o repugnante ataque do carniceiro da linha de Sintra. Mas o homem tem um feitio imoderado: quando a polícia entrou na carruagem estavam várias pessoas (e até mulheres e crianças, segundo consta) espalmadas contra as portas e as paredes, brancos como a baba do medo. No meio, a sorrir de maldade, um homem apontava uma faca de 44 centímetros sendo 33 de lâmina. Só ele estava a apreciar esta situação no comboio da 1h07 de Lisboa para Sintra.
Mas vamos ser menos duros. Alguém se lembra que este homem tem sentimentos? Alguém consegue compreender a sua alma se não disser, sem preconceitos, que o seu pior inimigo é o amor da própria mãe? Que ela costuma dizer "ele é doido, doido, doido!" quando fala dele, do carniceiro com outras pessoas a ouvir?
Outra coisa ainda: caiu sangue no chão daquela carruagem, mas foi ele que se distraiu e cortou o dedo mindinho com a faca.
Veja-se a figura: um homem com um bigode escorrido, e olhos totalmente arrependidos, tapa as orelhas num tribunal porque dois bancos atrás está uma mulher a chorar.
"Ai estou tão triste, tão triste, ai eu queria que ele morresse!" e essa mulher é a mãe dele. E chega o juiz que avisa que não quer mais gestos ou suspiros e a mulher confirma: "Senhor doutor, desculpe eu sou a mãe dele. Eu sou a mãe dele!"
O que se podia fazer em termos de defesa ele foi fazendo. O homem explicou que é cortador de carnes. Na verdade, corta carne há 16 anos, desde os 12, como o pai, que foi cortador antes de se mudar para estivador. Tinha saído do trabalho em Lisboa e pedira ao patrão que lhe emprestasse a faca para cortar umas bifanas no "snack-bar" de um amigo, em Sintra. Estava no comboio e a parva da faca, que ia dentro do blusão, escorregou para o solo e logo um histérico foi chamar a polícia porque estava ali um maluco assassino.
Era uma boa versão, mas veio um polícia que contou como os passageiros estavam arrepiados e espalmados nas paredes e a mãe (que de certeza o conhece melhor que a maior parte de nós) teve de explicar: "Isto está-me cá a fazer um nervoso, eu vou lá para fora!"
- "Vá lá para fora vá!", ordenou o juiz.
- "Ele só faz isto quando está bêbado! A minha nora também é doutora juíza! Vocês não lhe vão sacar nada que ele quando está sóbrio é uma jóia de um rapaz!", disse a mãe a sair.
- "Deves ser o Rambo! O meu irmão deve julgar que é o Rambo!", guinchou a irmã mais nova na sala do tribunal, piorando extraordinariamente a situação do carniceiro da linha de Sintra. Ele pediu tréguas com as sobrancelhas pretas e muito tristes, descidas quase ao nível das narinas, mas estava dito.
Há um segundo pormenor: a única vez que foi preso, que conste do cadastro criminal, foi quando espetou um canivete num agente da autoridade, há quatro ou cinco anos. Assim, a delegada do Ministério Público psicanalisou: "Não será que o senhor não distingue a sua profissão do resto da sua vida? Não consegue separar as duas coisas?"
- "Eu... também eu se fosse outro... se visse uma faca daquelas também me assustava...", sussurrou ele, como se estivesse a separar suavemente a gordura de uma carcaça encarnada.
- "Porquê esta fixação com armas deste tipo?"
- "Não sei."
E vieram as testemunhas, que confirmaram a sua conduta, e a coisa ficou muito mázinha. Até disseram que ele "estava esquisito" mas que não parecia álcool. E sendo assim, só podia ser droga, de maneira que ele pôs ordem na mesa.
- "Eu não sou toxicodependente. Bebi umas imperiais."
A delegada relembrou o perigo da "fixação do arguido por armas brancas fora do seu contexto lícito" e pediu a suspensão da audiência para exame fundamentado do caso anterior do canivete.
O juiz achou que não era preciso. Mas marcou a sentença para 26 de Dezembro, de maneira que a família do nosso homem vai ter muito em que pensar quando for hora de trinchar o peru, acção que deve ser a mãe a fazer.
Afinal, de onde vinha a faca? A mãe perseguiu-o aos berros no corredor, com vontade de lhe espetar uns caldos no pescoço.
- "Grande estúpido, nunca mais tens juízo!"
E foi um irmão, que esteve ali o tempo todo de mãos nos bolsos, quem contou a origem da faca: era a faca que ele tinha no "Barco do Amor". Era o irmão do carniceiro que a gente via a cortar a fruta no barco da série da televisão, com aquela faca! E isto, sinceramente, não lembrava no Natal nem ao Diabo, mas parece que é verdade.» Rui Cardoso Martins, in Os Contemporâneos do Público
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