Por Levi Guerra* n' O Primeiro de Janeiro- 9 de Julho de 2006
«Nunca pensei pronunciar-me sobre esta questão! Por muitas razões que me não obrigo a explicar. Aconteceu, porém, que ontem à tarde, uma tarde quente, luminosa e de céu sem nuvens, fui a Guimarães por razões culturais que também não especifico.
(...)
Nem só depois, mas logo que ao Toural assomámos, me vi a recordar a Avenida dos Aliados do querido Porto que é minha Terra de adopção desde a juventude. Dias atrás subira-a a pé, vindo da Casa de Guerra Junqueiro, onde assistira à abertura da belíssima exposição sobre Guilhermina Sugia, a caminho do Hospital da Lapa. Descida a escarpada e tumultuada Avenida da Ponte, passada a Praça de Almeida Garrett, frente à estação de S. Bento, dobrada a esquina para o passeio das Cardosas, atravessada a rua, vi-me na Praça da Liberdade onde se erige a estátua equestre de D. João IV (sic), felizmente ainda com cavalo e cavaleiro voltados para Lisboa, e estaquei, triste, frente ao velho Café Imperial com a monumental águia sobre a entrada, pouso das diárias tertúlias de intelectuais e professores de variadas proveniências citadinas, de encontros de comerciantes e industriais em acalorados palratórios, senão de grupos de bilhardeiros que diariamente despicavam o carambolar das três bolas – duas brancas e uma vermelha, de marfim ou de massa especial- movimentadas pelos golpes tecnicamente subtís dos tacos que as faziam correr sobre o pano verde que esconde a ardósia, os bilhares, sempre iluminados por dois candeeiros suprajacentes e a curta distância colocados.
Mas, logo me vi no início da Avenida dos Aliados. Passei para o meio dela, e vi-me, desolado, junto da marmórea ninfa desnudada e que sentada, de tronco ligeiramente encurvado com os braços a lateralizá-lo, de mãos apoiadas e seios descobertos, de olhar sereno e púdico, ali estava isolada, como que estranha e fora do natural ambiente em que ali, há quantas dezenas de anos?, fora colocada. E olhei para diante, para cima, no sentido do edifício da Câmara.
Sofri um baque no peito que quase me sufocou! Não queria crer no que via! Como fora tal possível?!!! Que houvera? Que temporal assolara a bela Avenida dos Aliados?!!! Se o Porto fora Berlim que arrasado se reconstruiu, vá lá! Mas nem em Berlim vi espaços recuperados ou reedificados, assim tão despidos e frios, como agora está a Avenida dos Aliados tornada praça de plúmbeo chão granítico a ligar artificialmente os outros espaços contíguos que ainda detêm o nome de praças, a de Humberto Delgado e a da Liberdade! Como é possível?! Como foi possível? Repetia, interpelando-me…
Não, não acho que estas decisões sobre questões patrimoniais desta grandeza e importância tenham de ser submetidas a plebiscito público (1), porque há valores que se tem de respeitar e que ninguém numa sociedade civilizada pode pôr em causa. Será alguma vez acto civilizacional pôr-se a plebiscito o direito à Vida?
O Jardim da Cordoaria foi, em 2001, outro exemplo. São atentados a um património identificável que ninguém tem o direito de destruir.
Património evidente e importantíssimo, de rostos antigos, criados e mantidos há dezenas de anos pelas gerações que nos precederam e que cumpre civilizacionalmente respeitar, gente sábia e sabedora, e cujos olhares se terão dulcificado, quantas vezes!, na beleza daqueles espaços de jardins prenhes de canteiros policromos a realçarem-se do verde dos relvados circundantes, sem se esquecer a beleza dos largos passeios que faziam da Avenida dos Aliados um local de calcorreio muito aprazível – como os que sabiamente restam em Guimarães . Tudo isto, no seu conjunto, fazia da Avenida dos Aliados a Sala Nobre da Cidade, a sua Sala de Visitas.
Álvaro Siza Vieira, é o maior Arquitecto português vivo, diz-se no “site” da Internet (Google). E diz-se mais, assim: …talvez o melhor arquitecto que o País jamais teve – cujas obras ao longo dos anos tem provado estarem entre as mais coerentes e completas de todas as grandes obras arquitecturais do Século XX. Esta coerência não é baseada na repetição estilística: assenta na evolução progressiva do acto de desenhar; como tal, o trabalho de Siza Vieira é imediatamente reconhecível onde quer que se encontre…Ele próprio diz de si: “o que é preciso e vejo na arquitectura é clareza e simplismo…”
Eu também admiro muito a obra arquitectural de Siza Vieira.
Se a Avenida dos Aliados nem tivesse história nem tivesse imprimido carácter àquela parte da Baixa do Porto que integra o seu núcleo histórico, tudo bem, seguisse ali Siza Vieira as suas aplaudidas e laureadas "vias da clareza e do simplismo" que eu, aliás, tanto aprecio nas edificações da sua autoria, sobretudo na área da museologia onde tem um mérito insuperável.
Lamento que Siza Vieira tenha aceitado mexer no que não era tocável. Lamento que tenha havido quem lhe tenha pedido que o fizesse. O grande arquitecto Siza não produziu, não! e não! e não!, obra assisada no coração do Porto. Restou desolação!
Lamento muito que não tenha sido mais senso e que, desde agora, passe a ver-se incluído na sua gloriosa obra de prestígio mundial, que tanto honra a nossa Pátria, tão lamentável desacerto cometido. Pelo menos sê-lo-á, por certo, penso, para muitos dos que conheceram a Avenida dos Aliados. Quando a memória se apagar, talvez venha quem por tal o enalteça. Siza Vieira é muito grande para ser negativamente tocado com o que aqui digo. Faço-o por império da minha cidadania, mais nada! Não para o desmerecer. »
*-Médico. Professor Universitário jubilado.
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