"Giovanni P..., siciliano, comparece num tribunal de Brooklyn para responder pelas sevícias graves que infligiu à esposa. Inquirido sobre os seus motivos, explica - em dialecto anglo-siciliano - que a mulher violou o cinto de castidade que ele a obrigava a usar, cortando-o com a tesoura. Confusão do juiz, dos jurados, do auditório: Cinto de castidade? Que vem a ser isso? - Ninguém o sabe, e o siciliano, encavacado, não pode, ou não ousa, explicar. A audiência é suspensa, e o pretório em peso corre a um museu local para estudar um exemplar ali existente da (por eles, ou para eles) nunca vista maravilha.
Satisfeita a curiosidade e remediada a compreensível ignorância da Justiça, o julgamento prossegue:«Por que razão é que tu forçavas a patroa a usar esta coisa tão bárbara?»
«Porque ela é napolitana, e muito ardorosa!» explica o acusado.
«Talvez por ter nascido perto do Vesúvio, não?», comenta o magistrado, piscando o olho aos senhores jurados, por cima das lunetas severas. Borborigmas de riso...
«Mas ela é-te infiel? Ou tens algum motivo para o suspeitar?»
«Nenhum! Ela é-me fiel, tenho a certeza, e boa rapariga. Mas vale mais prevenir que remediar, sabe Vossa Honra? Por isso a castiguei. No lar, quem manda é o homem.»
Ouvida por sua vez, a mulher declara que conhecia o esconderijo onde o marido guardava a chave do seu cárcere-de-pudor, mas nunca a foi lá buscar.
«E porque não?» interrompe o juiz. Porque isso seria enganá-lo, mentir-lhe. Só tirava o cinto na presença e com autorização dele.
«Hum!» faz o juiz. Preferiu revoltar-se, e assumir a responsabilidade do seu acto. Como o cinto de couro a incomodava muito, foi-se a ele com a tesoura e rasgou-o de alto a baixo. Génios! A sova deixou-a quinze dias de molho. Oh lavas de Vesúvio! Oh castidade!
Sobre isto, o tribunal condena o réu a três meses de cadeia (pena suspensa) e o juiz faz à esposa um criterioso sermão sobre a higiene e os direitos da Mulher.
Ainda há juízes em Brooklyn. E cintos de castidade!"
José Rodrigues Miguéis, in O Espelho Poliédrico
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