domingo, 12 de março de 2006

"Direito em tertúlia literária"

"A Justiça deve tornar-se mais humana. E pode sê-lo com a ajuda da Literatura. A sentença foi proferida por dois juizes, um advogado e um economista. O colectivo deu como provada a solidão da escrita e a necessidade de fuga à realidade.

Ricardo Patrício, in O Primeiro de Janeiro, 11/03/06

Quais as afinidades entre o Direito e a Literatura? Foi para responder a esta pergunta que a Associação Jurídica do Porto juntou, anteontem à noite, no Clube Literário do Porto dois juízes, um advogado e um economista – respectivamente Sampaio Gomes, José Igreja Matos, Aventino Pereira e Manuel Dias da Fonseca.
Sob uma atmosfera tipicamente tertuliana, a fazer lembrar os tempos em que as vidas eram sentenciadas à mesa dos cafés, os convidados concordaram que “a secura” do Direito e “a beleza” da Literatura “podem e devem” convergir no conceito de Justiça. Uma ideia plasmada na afirmação de Igreja Matos: “A Literatura é tanto melhor quanto mais humana e a Justiça não pode ser justa se não for humana”. Seja porque a “aridez que se impõe no Direito também se impõe na Literatura” – como notou Aventino Pereira – ou porque – como referiu Igreja Matos – “o tribunal é uma ficção, na medida em que é aí que se reconstitui a memória e isso não é possível sem ser ficcionado”.
Com efeito, o desejo limite do juiz desembargador Sampaio Gomes era o de “escrever a sentença mais bela, aquela que pudesse encerrar todos os amores e ódios”. Uma tarefa que o próprio assumiu como “impossível”. Assim como o desejo de decretar absolvições ao som de «Rigolleto», de Verdi, e condenações a partir do «Requiem», de Mozart.

Escape da solidão
Os quatro convidados da Associação Jurídica do Porto têm em comum a grande paixão dos livros. Tanto Sampaio Gomes como Aventino Pereira, ambos com livros editados, concordam com a “extrema solidão” quer das figuras do Direito como dos escritores. E nos seus casos particulares afirmam “a necessidade de fugir da realidade”, tal como sublinhou Sampaio Gomes. Ou, nas palavras de José Aventino, “escrevo para não pensar em Direito”.
Para Dias da Fonseca, presidente da Fundação Casa da Música, ficou reservada a defesa da boa escrita, com base na qual afirmou o apreço que diz ter “pelas pessoas do Direito por escreverem bem”. Uma nota rebatida, de imediato, por Aventino Pereira: “Hoje já não acontece tanto”. Em jeito de graça, o juiz Igreja Matos elegeu o Conselheiro Acácio – criação literária de Eça de Queirós no livro «O Primo Basílio» – como a figura mais conhecida do Direito em Portugal. Defensor do Governo e da Monarquia, apegado à tradição e aos valores familiares, o Conselheiro Acácio tipifica o formalismo típico da época, o falso moralismo e o apego às aparências. “É preciso humanizar a Justiça para não perpetuar a figura do Conselheiro Acácio”, observou Igreja Matos.

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Bibliografia
Matéria de lei
O transporte de temas de Direito para a Literatura é muito frequente. Obras como «Ursa Maior», de Mário Cláudio, que retrata um homicídio passional verídico; ou «Lolita», de Vladimir Nabukov, que trata o amor entre um adulto e uma criança; e até «Crime e castigo», da autoria de Fiódor Dostoiévski, que se concentra os limites da liberdade da acção humana, são exemplos de uma abordagem literária a fenómenos de índole judiciária e judicial. "