Uma amiga de longa data pediu-me que lhe corrigisse as vírgulas na tese de
doutoramento. Com certeza que sim. Atirei-me, pois, às vírgulas. Mas
confesso que não estava preparado. É que a tese - não sei como dizer isto -
debruça-se sobre a problemática da cessão dos créditos.
Confortavelmente esticado na minha caminha, de lápis na mão, dei por mim
teletransportado ou, se preferirem, transplantado para a década de noventa
do século passado. Essa tarde recordou-me outras tardes, árduas e
infindáveis, há 12 ou 13 anos. Era, nessa época, aluno do curso de Direito.
Saquei o canudo em 1995. E, depois disso, tenho mantido o silêncio. Mas
agora, passado o período de nojo, aproveito para deixar aos meus leitores
dois ou três avisos sobre o dito curso.
Pois bem: trata-se da mais inconcebível, árida, macilenta e desprezível das
criações humanas. Reparem que nem sequer me refiro ao Direito propriamente
dito: sobre essa matéria a conivência dos juristas com tiranias sortidas e
as obras completas do Kafka chegam e sobram. Quero agora evocar apenas o
curso, aqules cinco penosos anos de colónia penal. Convém aliás explicar
que o curso de Direito tem cinco anos não por exigências curriculares mas
como forma de homenagem aos planos quinquenais soviéticos. A lógica de
opressão, de dirigismo e de extermínio é a mesmíssima. Não vou agora aqui
sumariar a minha experiência estudantil, a qual, aliás, foi aprazível a
princípio e se tornou depois indiferente.
Mas recordo-me bem do momento de viragem. Em pleno terceiro ano, o meu
descontentamento veio ao de cima violentamente, como um almoço mal
digerido. Estava numa aula de Direitos Reais. Estava aborrecido. Estava com
sono. Escrevinhava coisas num caderno. E em cima do estrado, o monocórdico
mestre dissertava sobre a «servidão de estilicídio». Eu explico: trata-se
de garantir escoamento das águas quando um prédio vizinho não está a mais
de cinco decímetros do outro. A minha vaga insatisfação com o curso
tornou-se, nesse segundo, algo de muito mais agudo, como uma úlcera que
rebenta. Eu não sabia o que queria fazer da minha vida; mas não era
certamente estudar o escoamento de águas e a distância entre os prédios.
Que se lixasse o estilicídio. Eu queria distância era do curso. Porque essa
era a nossa faina. Engolíamos, como óleo de rícino, noções assim
intragáveis durante dez infindáveis s emestres. Não apenas a acção de
despejo, o IRS ou a recorribilidade do acto administrativo, assuntos
minimamente perceptíveis, mas muitas e muitas bizarrias. A Constituição da
Costa Rica. O inadimplemento culposo. A impugnação pauliana. A venda a
retro. A ineptidão da petição inicial. As prescrições presuntivas. A
substituição quase-pupilar. O fideicomisso. O anatocismo. A enfiteuse. Os
vícios redibitórios. Os impedimentos dirimentes relativos. O contrato
sinalagmático. O registo das sociedades em comandita. O benefício da
excussão. E, claro, a cessão de créditos. É preciso ter um interesse
desmesurado acerca das regras que regulam uma sociedade, em todos os seus
nauseabundos detalhes, para estudar estas salgalhadas. E para aguentar os
infindáveis casos entre o 'senhor A' e o 'senhor B', que vendiam um ao
outro casas, se processavam, pediam licenças de uso e porte de arma,
deixavam violas de gamba em usufruto, e por aí em diante. Por vezes iam
mais longe: o usufruto era em Amesterdão, a arma de Poiares da Beira, o
processo na Califórnia e a casa nas Comores. Quid juris?, > perguntavam,
sacanas, os lentes. Não sabíamos nem queríamos saber. Por esta altura,
todos nós queríamos mais era que o senhor A e o senhor B se quilhassem.
Manhãs e tardes a fio assisti a isto. Noites e noites a fio estudei isto.
Vou ter olheiras para sempre por causa disto. Arruinei a minha caligrafia
por causa disto. Sofri horrores de nervos e bexiga por causa disto.
Aguentei o prof. Soares Martinez por causa disto. Comprei e sublinhei de
capa a cap a catrapácios de setecentas páginas sobre a pensão de alimentos
> por causa disto. Por isso vos digo, ó finalistas do liceu: não se metam
nisso. Parafraseando Jaques Séguéla, diria que há actividades bem mais
decentes. Como pianista num bordel.